O Covid tem distanciado as pessoas, não só em metros
Uma das coisas boas relacionadas com o Covid-19 de que se tem ouvido muito falar tem sido a entreajuda entre pessoas, com os vários grupos de voluntários entre vizinhos e outras comunidades a surgirem para apoiar as pessoas que mais necessitam de que já falei aqui e também aproximou pessoas que já se conheciam mas que se mantiveram mais em contacto durante o lockdown, sobre o que falei aqui. Por outro lado, apercebi-me no outro dia que, ao longo deste tempo, também tenho presenciado exactamente o oposto. E sinto isso mais ainda, agora que começamos a sair do lockdown. Sinto que as pessoas tanto têm estado unidas quanto têm estado mais sensíveis e críticas às atitudes dos outros, chegando até a ser abusivas umas com as outras.
Comecei então a pensar nos vários eventos em que encontrei esse tipo de abuso:
- #StayTheFuckHome foi uma campanha lançada durante o lockdown e que foi utilizada não só em países de língua inglesa, mas como outros, inclusive em Portugal. O objectivo - incentivar as pessoas a ficarem em casa, e consequentemente ajudar a não espalhar o virús. Tudo perfeito quanto ao objectivo. Mas reparem na escolha de palavras - Stay THE FUCK home. Porque é que teve que ser adicionado o 'the fuck'? O governo e o NHS tinham lançado já a campanha #StayAtHome que transmite exactamente a mesma mensagem. O facto de se adicionar o 'the fuck' transmite logo um factor negativo e rude à campanha. E consequentemente, sendo que as pessoas viram tanto essa campanha, é normal que sentirem que fazer essa exigência é perfeitamente aceitável, e que é perfeitamente aceitável de certa forma 'maltratar' os outros ao utilizar palavras tão fortes (pode não ser um maltrato físico, mas não deixa de poder ter consequências negativas para quem o recebe). E agora algum de vocês perguntam - "mas o que é que tens contra isso? Não achas que foi correcto as pessoas ficarem em casa?" - Claro que sim. Concordo plenamente que isso tenha sido uma medida necessária. Mas para algumas pessoas ficar em casa o tempo todo não é uma hipótese tão fácil como para outras - possivelmente para as pessoas que vivem sozinhas ou que vivem com pessoas com quem não se dão bem tenha sido mais difícil passar o lockdown, do que pessoas que vivem com parceiros e em famílias felizes. Pessoas que vivem em más condições, em quartos pequenos, com famílias abusivas, todas elas terão achado mais difícil passar todo o tempo em casa do que os outros que vivem em casas grandes, com espaço, jardim privado e afins. E agora imaginem serem uma dessas pessoas que precisavam mesmo de sair um pouco mais que a maioria para o bem da sua saúde mental, e ser bombardeados com a mensagem 'stay the fuck home'.
- Envergonhar pessoas nas redes sociais por terem ido a zonas de afluência de pessoas durante o lockdown - quase todos os fins-de-semana via-se imagens a percorrer as redes sociais dos parques de Londres cheios de pessoa, o que levava a um total choque por parte de todas as outras pessoas que viam essas imagens e que começavam a escrever todo o tipo de mensagens abusivas nas redes sociais. E tenho que confessar que eu própria partilhei uma imagem de um parque cheio na altura do lockdown que também achei péssimo (mas não fiz comentários abusivos). Mas agora olhando para trás e pensando melhor sobre o assunto - se as pessoas não fossem a esses parques será que conseguiam andar até outro local que lhes trouxesse a mesma sensação de calma que um parque? É normal que as pessoas escolham o seu local de passeio como o local próximo que seja mais bonito, mais calmo, e geralmente, na maioria dos conselhos de Londres, esse local será o parque. E também, as pessoas não sabem se o parque vai estar cheio antes de lá chegarem, e mesmo que cheguem e vejam que estejam lá muitas pessoas, desde que sintam que estão com mais de 2 metros de qualquer outra pessoa, sentem-se seguros e continuam o seu passeio. E a outra situação é que as próprias pessoas que partilhavam fotos dos parques cheios, também tinham estado no parque, portanto estavam a contribuir para o parque cheio.
- Protestos - uma morte injusta de um cidadão dos EUA levou a que milhares de pessoas pelo mundo despertassem a anos de injustiça e viessem para as ruas em protesto para exigir mais igualdade e justiça. O que recebem? Abuso.
- Festas clandestinas - agora que começaram a haver reduções de restrições começaram também a haver pessoas a fazer festas. Congregam-sem em casas, em parques e afins. As pessoas que foram até podem ter pensado que seriam festas pequenas, com distancia social, mas depois chegaram lá e tal, e se calhar a festa estava boa, e já há tanto tempo que não podiam ir a uma festa, e tinham saudades que deixaram-se estar. Receberam também abuso por ter ido às festas.
- Abriram as lojas - E ao abrirem as lojas parece que as pessoas não têm podido comprar tudo aquilo que queriam online durante este tempo todo, que de repente as filas e encontrões para as pessoas visitarem centros comerciais, a Primark, a loja da Nike e tudo mais, foi uma loucura. O motivo das pessoas que foram? Talvez gostem muito da experiência de compras numa loja, talvez não gostem de comprar online. Mas o que receberam? Abuso!
Porque é que eu estou a escrever este post a defender esta gente toda que não cumpriu com as regras? Não estou. Não é esse o meu objectivo. O meu objectivo é alertar para o inúmero abuso que tem havido ao longo dos últimos meses. As pessoas são todas diferentes e todas têm os seus motivos para tomar certas atitudes com as quais, nem todos concordamos. Mas o nível de abuso de tem resultado não faz bem a ninguém - nem a quem o recebe, nem a quem o dá. As opiniões podem ser dadas. Críticas construtivas e discussões de pontos de vista devem continuar sempre a ser debatidos, mas não é preciso ser com abuso. E com a variedade de exemplos que dei deve dar para perceber que não são sempre as mesmas pessoas a quebrar todas as regras mencionadas. Aqueles que foram agora à Primark, talvez tenham estado a comentar abusos para os outros que estavam no parque durante o lockdown, e os que foram às festas possivelmente andavam a partilhar #staythefuckhome durante o mês de Abril. Basicamente, com este post apenas quero alertar para que pensem na melhor forma como dar a vossa opinião sem ser preciso utilizarem formas e palavras abusivas e confrontais negativas. Afinal, quem não desrespeitou uma única regra do governo durante esta pandemia até agora, que atire a primeira pedra.